Entre Vingança e Aceitação: A Resiliência Estoica de Abby em The Last of Us

No estoicismo, a resiliência é entendida como a capacidade de manter a serenidade e a clareza de julgamento mesmo diante de adversidades, pautada no autocontrole, na distinção entre o que se pode e o que não se pode mudar, e no cultivo das virtudes internas como sabedoria, coragem e temperança. Essa abordagem valoriza a aceitação racional das circunstâncias externas (amor fati) e o foco na resposta interna, promovendo uma paz de espírito que não depende das condições externas, mas de como interpretamos e reagimos aos eventos.

A segunda temporada de The Last of Us estreou em 13 de abril de 2025, introduzindo Abby como personagem central na discussão sobre trauma, vingança e possíveis caminhos de redenção. Esse momento de grande repercussão cultural torna oportuno explorar como o arco de Abby pode ilustrar princípios estoicos de resiliência: desde a raiva inicial e o desejo de vingança até a eventual aceitação do incontrolável e a busca por uma vida orientada por valores internos.

O objetivo deste post é analisar de que forma a trajetória de Abby em The Last of Us exemplifica lições de resiliência estoica, oferecendo reflexões práticas que o leitor pode aplicar em desafios pessoais.

Contexto Narrativo de Abby

No jogo The Last of Us Part II (2020), Abby Anderson surge como uma das protagonistas jogáveis, trazendo ao enredo uma perspectiva inicialmente antagônica a Joel e Ellie. Sua introdução visa provocar uma reação forte no jogador: Neil Druckmann e sua equipe pretendiam que, ao assumir o controle de Abby, o público passasse de rejeição inicial a empatia por sua história e motivações.

Na adaptação para a série da HBO, cuja segunda temporada estreou em 13 de abril de 2025, Abby é interpretada por Kaitlyn Dever, escolhida por capturar a profundidade emocional da personagem em vez de reproduzir exatamente seu perfil físico do jogo. Essa transposição reflete o cuidado em traduzir uma experiência interativa para um formato televisivo, levando em conta que o público já chega com expectativas e receios sobre o arco de vingança de Abby.

Uma das mudanças cruciais na adaptação está na forma como Abby é apresentada: no jogo, sua identidade e motivações são reveladas de modo progressivo, pois o jogador descobre quem ela é ao assumir seu controle; na série, optou-se por evidenciar sua ligação com Joel e a razão de seu ressentimento desde o início da temporada, evitando confusão e garantindo empatia mesmo entre espectadores que não jogaram Part II. Essa decisão visa manter o engajamento sem depender da surpresa interativa, mas compartilhando o pano de fundo para que a tensão dramática se apoie em compreensão prévia.

A motivação inicial de Abby está centrada na vingança pela morte de seu pai, Dr. Jerry Anderson, cirurgião dos Vagalumes que Joel matou no primeiro jogo para salvar Ellie. Esse evento desencadeia todo o ciclo narrativo: Abby busca enfrentar Joel pelo papel que ele desempenhou na perda de alguém querido, o que a lança numa trajetória de dor, conflitos morais e confrontos físicos e emocionais.

Princípios Estoicos Relevantes

O estoicismo oferece ferramentas centrais para cultivar resiliência interna. A seguir, exploramos alguns dos princípios mais relevantes:

1. Controle interno vs. externo
Os estoicos propõem distinguir claramente entre o que está sob nosso controle — nossos pensamentos, julgamentos, desejos, aversões e ações — e o que não está — eventos externos, ações de outras pessoas e resultados fora de nossa esfera de influência. Epicteto afirma que “não é o que acontece com você, mas como você reage a isso que importa”, incentivando o foco na resposta interna em vez de resistir ao incontrolável. Esse entendimento ajuda a evitar sofrimentos desnecessários, ao reconhecer em que vale a pena investir energia (refletir sobre reações, ajustar expectativas) e em que não (pressupor controle sobre eventos alheios).

2. Aceitação amorfati
“Amor fati” significa amor ao destino: aceitar integralmente a realidade, mesmo em seus aspectos cruéis ou dolorosos. No estoicismo clássico, embora o termo não apareça literalmente na obra original (é mais associado a Nietzsche), a ideia de abraçar o que acontece como parte de uma ordem racional universal está presente em Marco Aurélio e em reflexões estoicas sobre aceitar o imprevisto pt.wikipedia.orghuffingtonpost.es. Praticar amorfati envolve reconhecer que não podemos desfazer o passado nem controlar certos eventos, mas podemos escolher acolher as circunstâncias e extrair lições, mantendo serenidade mesmo diante das adversidades.

3. Cultivo da virtude
Para os estoicos, a verdadeira resiliência vem do exercício e vivência das virtudes cardeais:

  • Sabedoria prática: tomar decisões guiadas pelo entendimento racional, discernindo entre fins e meios, e alinhando ações a valores maiores.
  • Coragem: enfrentar o sofrimento ou perigos sem se deixar consumir pelo medo ou pela angústia, reconhecendo que desafios são oportunidades de fortalecimento moral.
  • Justiça: agir de modo equitativo e benevolente, considerando o bem comum e respeitando a dignidade alheia, mesmo quando a vingança ou raiva poderiam sugerir outro caminho.
  • Temperança: moderar desejos e impulsos, evitando excessos emocionais que possam desviar do propósito racional. Esse autocontrole é essencial para não ser arrastado por paixões nocivas. Juntas, essas virtudes servem de guia interno, conferindo consistência e força mesmo em cenários extremos.

4. Importância da reflexão racional
Os estoicos recomendam práticas diárias de autorreflexão (journaling, exame mental) para identificar motivações internas e avaliar reações a eventos. Esse exercício permite perceber quando agimos movidos por impulsos (raiva, ressentimento) em vez de análise ponderada. Epicteto e outros ensinam que, ao reconhecer esses impulsos, podemos intervir antes de agir, escolhendo respostas alinhadas com as virtudes em vez de ceder ao ódio ou desespero. Assim, a reflexão racional funciona como um “filtro” entre estímulo externo e ação, fomentando resiliência ao fortalecer a consciência de si e clarificar o que realmente importa.

Análise do Arco de Abby sob a Lente Estoica

  • Trauma e raiva inicial:
    • Como a busca por vingança representa uma reação natural, porém fora do controle racional.
    • Reflexão: a raiva como impulso que Abby tenta (ou precisa tentar) subjugar para não se perder.
  • Desafios físicos e emocionais:
    • Momentos em que Abby enfrenta perigo extremo (combates, ferimentos), ilustrando coragem estoica ao suportar dor sem desespero total.
    • Conflitos internos após atos violentos: culpa emergente e o peso psicológico de ter ferido ou matado.
  • Pontos de virada para reflexão:
    • Cenas-chave (jogo e série) em que Abby presencia consequências imprevistas de sua vingança.
    • Situações que a forçam a reconhecer que não pode mudar o passado e que precisa decidir seu próximo passo com base em valores internos.
  • Aceitação e reconstrução:
    • Momentos em que Abby escolhe cuidar de si mesma ou de outros como forma de transcender o ciclo de violência.
    • Demonstração de que o verdadeiro controle reside em como ela lida com as consequências, reconciliando-se internamente.

Exemplos Práticos de Diálogos/Cenas

  1. Introdução Explícita de Abby no Primeiro Episódio da S2
    Logo na abertura de “Future Days”, somos levados a Salt Lake City, onde Abby aparece em um cemitério improvisado, chorando junto ao túmulo de seu pai, Dr. Jerry Anderson. A cena estabelece imediatamente seu estado emocional: dor, raiva e determinação contida. Ao jurar “Lentamente. Vamos matar ele bem lentamente”, ela revela seu propósito e o peso de seu trauma, deixando claro que sua missão pessoal definiu sua existência desde então. Essa introdução antecipada de motivações — diferente do jogo, que só revela os detalhes quando o jogador assume o controle de Abby — serve para que o público televisivo compreenda, desde o início, a profundidade de sua dor e o porquê de sua obsessão, criando empatia ou, ao menos, compreensão de seu impulso vingativo.
  2. Sequências de Confronto com Joel: Tensão Visceral e Reflexões Internas
    Quando Abby encontra Joel no alojamento nas montanhas, há um crescendo de tensão carregado de simbolismo: ele não sabe quem ela é, e ela segura as informações até o momento certo. A sequência do combate — a revelação de sua cicatriz, o reconhecimento de seu rosto e a lembrança do passado— é filmada de modo a enfatizar o choque mútuo. Joel, surpreso, tenta negociar sua sobrevivência; Abby, embora inicialmente movida pela fúria, mostra traços de hesitação calculada antes de executar a vingança: primeiro corta seu joelho com o taco de golfe, depois, ao rememorar cada detalhe da morte de seu pai, libera a violência contida. Após o ato, as expressões corporais de Abby — respiração pesada, olhar que ora busca confirmação de ter “fechado o ciclo”, ora revela um vazio existencial — indicam o início de questionamentos internos: a raiva cumpriu seu objetivo, mas a escolha violenta carrega um peso imenso, abrindo espaço para compreensão estoica sobre os limites do controle externo e o impacto interno de nossas ações.
  3. Momentos Silenciosos: Culpa, Exaustão e Interações com Outros Sobreviventes
    Há cenas em que Abby, depois dos eventos mais intensos, aparece sozinha ou em silêncio com companheiros, e o contraste é marcante. Em flashbacks ou momentos de transição (por exemplo, ao caminhar sozinha pelas paisagens nevadas ou ao acordar de pesadelos em que revisita o hospital dos Vagalumes), observamos sua expressão conflituosa: lamenta o passado que não pode mudar e encara o medo de que sua vingança não traga alívio verdadeiro. Essas sequências silenciosas permitem analisar sua linguagem corporal: ombros tensos, olhar distante, gestos contidos que sugerem exaustão mental. Ao se relacionar com membros do grupo, vemos diálogos curtos em que ela escolhe não falar sobre o peso que carrega, mas suas reações — tom de voz firme, porém sem convicção absoluta — indicam luta interna. Esses momentos são férteis para interpretação estoica: ilustram o processo de reconhecer que o passado (a morte do pai pelas mãos de Joel) é inalterável e que, após a ação, resta a Abby confrontar a si mesma, discernir o que ainda está sob seu controle (suas reações, escolhas futuras) e começar a cultivar virtudes internas para lidar com a culpa e a incerteza.

Conclusão

Abby personifica a tensão entre a raiva impulsiva e a aceitação virtuosa: movida pelo desejo de vingança, ela inicia uma trajetória onde cada ato violento revela um vazio interno maior, mostrando que a reação a eventos externos (morte de seu pai) está além de seu controle, mas sua forma de lidar com as consequências é responsabilidade inteiramente sua.

Ao enfrentar dor física e emocional, vemos ecos do princípio estoico de focar no controle interno (“Você tem poder sobre sua mente – não sobre eventos externos”), e contemplar que a vingança, embora compreensível, não garante alívio duradouro. Nos momentos silenciosos, sua expressão de culpa e exaustão convida à reflexão racional: após agir movida pela raiva, resta a ela discernir escolhas futuras alinhadas à coragem e sabedoria, demonstrando que aceitar o incontrolável (amor fati) é ponto de partida para reconstruir sentido interno.

Convido você, leitor, a aplicar essa lente estoica em seus próprios desafios: identifique situações em que reage impulsivamente (como Abby frente à perda); reconheça o que está fora de seu alcance e concentre-se em como responder de modo coerente com suas virtudes. Pergunte-se: “Que poder interno posso exercer agora? Como posso transformar um impulso destrutivo em oportunidade de crescimento?”

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